Os Anos Loucos - Capítulo 6: Recém-Chegados

"Essa Paris me abalou dos pés a cabeça"

Escreveu Joan Miró para casa, acrescentando: "no bom sentido." Ele estava abalado, surpreendido pelo novo e bombardeado por sensações, mas incapaz a princípio de traduzir a experiência na tela. O tímido e introvertido catalão andava pelas ruas da grande cidade olhando tudo, e em silêncio.

Tanto Miró quanto Picasso eram de Barcelona, mas o caráter e o talento opunham-nos como catalães. Picasso pode ter dado as costas a velhos amigos dos anos cubistas, no entanto foi extremamente expansivo ao receber o recém-chegado Miró, assumindo o papel de irmão mais velho e mentor do seu colega espanhol: instalou-o num quarto de hotel na rue Notre-Dame-des-Victoires, onde moravam muitos de seus compatriotas. Picasso lembrava-se da sua sofrida transição para a efervescente capital das artes e da necessidade que ele havia sentido de conviver com espanhóis. Para facilitar o lançamento de Miró no mundo artístico parisiense, Picasso apresentou-o a seu marchand, Paul Rosenberg. E também comprou duas pinturas de Miró, um modo ainda mais eficaz de expressar interesse autêntico pelo talento do artista mais novo.

Nos primeiros meses, Miró perambulou pela cidade estranha como alguém deslocado, oprimido por uma turbulência de impressões e imagens. Ao voltar para seu desolado quarto de hotel por trás da Bolsa, era incapaz de pegar num pincel ou de fazer um esboço.

"Toda a doçura que há aqui penetra-me até a medula"

Escreveu ele, mas viu-se forçado a retornar por pouco tempo a Espanha, para recuperar a capacidade produtiva e prosseguir com mais vigor.

Em Barcelona, Miró desfez-se de toda a obra que até então realizara, uma grande quantidade de pinturas que entregou a um marchand por um preço único à vista, com a promessa de uma eventual exposição em Paris. Ele jamais seria o pintor que sentia necessidade de ser sem o estímulo daquela cinzenta e dinâmica cidade ao norte. Ao voltar, em 1921, para um segundo assalto a capital, conseguiu seu próprio estúdio, que lhe foi cedido pelo escultor espanhol Gargallo.

O novo endereço, rue Blomet, 45, foi significativo. Era vizinho de Miró no mesmo prédio André Masson, que vivia no estilo sórdido de um montparnos, praticando um "desregramento sistemático de todos os sentidos" obtido em parte pela ingestão de absinto. O sentido de ordem de Miró era justamente o contrário da boemia caótica a que Masson se dedicava. Quando os dois pintores se tomaram amigos, Masson se espantou com as paredes caiadas do ateliê de Miró, com a simples e meticulosa disposição das telas e dos tubos de tinta, exigências que eram fundamentais ao caráter do pintor espanhol.

Miró já conhecera Picabia em Barcelona e ficara impressionado com a sua energia, seu humor negro e sua desafiadora atitude de "apagar o passado". Picabia levou seu companheiro Tzara à rue Blomet, 45, onde, na eclética companhia de Michel Leiris, Robert Desnos, Jacques Prévert e Antonin Artaud, nasceu o Grupo da Rue Blomet. Ora eles se reuniam no modesto estúdio de Miró, ora, quando fazia calor, sentavam-se no gramado do pátio junto a um pé de lilás.

Miró, tão pobre que não podia se permitir mais de um almoço por semana, alimentava-se das animadas discussões dos dadaístas. Tímido demais para exprimir suas idéias, limitava-se a encher a cabeça com as apaixonadas declarações de independência desse grupo radical de pintores e poetas. Philippe Soupault insistiria: "A limpeza é a luxúria dos pobres - seja sujo!", enquanto Tzara entoava o obituário dos cubistas: "O cubismo, meus amigos, é uma catedral de merde."

De 29 de abril a 14 de maio de 1921, Miró mostrou sua produção mais recente na Galeria Licome, na rue La Boétie. Nem um só quadro foi vendido. No entanto, o crítico Maurice Raynal, em suas notas no catálogo, falou da 'temeridade' de Miró - temeridade do tímido catalão que havia desembarcado em Paris com lama de Montroig nas botas. Ainda no fundo um camponês, Miró completou em 1922 as últimas cenas de um ciclo de Montroig-Barcelona, A fazenda. A partir desse ponto, entregou-se as experiências revolucionárias que visavam "expressar as fagulhas douradas lançadas pela alma". O Grupo da Rue Blomet fundiu-se aos surrealistas liderados por André Breton. Com a prudência de um camponês, Miró passou a integrar as fileiras daqueles que buscavam "uma espécie de realidade absoluta, uma supra-realidade".

Até então, o cubismo havia dominado as galerias e ateliês com os frios e desapaixonados estudos de guitarras, seções de tubos e garrafas. "Eu quebrarei a guitarra deles", diria Miró em seu primeiro rompante de ousadia e começando a dominar a língua francesa. O introvertido rapaz da Catalunha já estava enfronhado no ambiente cosmopolita.

"Barcelona nunca mais, isso é certo.
Paris - até o dia em que eu morrer".

Os Hemingways chegaram a Paris, vindos de Le Havre no trem do porto, num compartimento apinhado de soldados imberbes. Hospedaram-se no barato Hôtel Jacob, e descobriram um restaurante, o Pré aux Clercs - jantar para dois por 12 a 14 francos, vinho Pinard a sessenta cêntimos - na esquina da rue Jacob com a rue Bonaparte. A rue Bonaparte fez Hemingway pensar na Paris de François Villon, quando raposas penetravam furtivamente na cidade sob o patíbulo público de Montfaucon. Em cartas para casa, ele falou dos dias deliciosos que o casal vivia, "andando dia e noite pelas ruas, de braços dados, espiando os pátios das casas e parando diante das vitrinas das pequenas lojas". Com os velhos amigos de Chicago sob a lei seca, ele se gabou: seu quarto de hotel parecia uma loja de bebidas. Uma garrafa de rum Saint James custava 14 francos. "É o genuíno rum de sete anos, suave como o queixo de uma garotinha." o franco, em 1921, dava "14 por uma nota de um dólar".

Hemingway tinha instinto para encontrar onde morar por pouco em lugares que a princípio não prometiam muito. Sua primeira residência foi um pequeno apartamento num quarteirão à margem da rue Mouffetard. A place de la Contrescarpe atraía uma instável colônia de clochards beberrões que compravam litros de vinho novo ou, por alguns cêntimos a mais, tomavam rum no Café des Amateurs na praça. Os Hemingways moravam perto da esquina, na rue Cardinal Lemoine, 74 (do outro lado da rua de uma das residências emprestadas a James Joyce, no 71). Sua aceitação de Paris no nível sórdido, como também no sublime, possibilitou que os recém-casados se adaptassem a rude vizinhança e ali se estabelecessem como qualquer casal francês nas mesmas circunstâncias.

Ao visitar o apartamento de Hemingway, Janet Flanner subiu a fétida escada em espiral com uma torneira d'água e um tosco pissoir em cada patamar. Os poucos cômodos do apartamento tinham forma indefinida, cheios de arestas e ângulos inesperados; os móveis eram pesados e feios. O banheiro não passava de um cubículo sem água encanada, com uma bacia e um jarro para suprir a falta desta e um balde para levar a água servida. Os baldes eram despejados nos patamares da escada, enquanto o lixo tinha de descer quatro lances para chegar ao pátio interno.

"Pode-se viver cada vez com menos" era o lema de Hemingway nesse tempo. No dia da visita da srta. Flanner, Ernest e Hadley ofereceram-lhe um ovo como almoço. Mas também havia batatas cozidas e vin ordinaire - a loja de Bois-Charbon-Vin ficava bem em frente, no outro lado da rua.

Na feira da rue Mouffetard, Hadley comprava os legumes mais baratos; um dos seus prediletos era o poireau (alho-porro), que ela preparava à moda francesa: cozido e servido frio com vinagre e azeite. De manhã cedo, um pastor de cabras entrava pela place de la Contrescarpe com seu troupeau, tirando sons estridentes de uma flauta para chamar os fregueses. À noite passavam os vidangeurs, com sua bomba puxada a cavalo, para limpar as fedorentas fossas sépticas do quarteirão.

Para escrever sem ser incomodado, o jovem autor alugou um quarto na rue Descartes, 39, onde constava que Verlaine tinha morrido, prestando assim uma indireta homenagem ao passado literário francês. Uma homenagem verdadeira era rendida a Flaubert, cuja dedicação a le mot juste era forte inspiração para o escritor iniciante que lutava para encontrar o vocabulário preciso.

Com a friagem das chuvas no final do outono, a umidade encharcava as paredes. Da janela de sua água-furtada, Hemingway descortinava um panorama cinzento de telhados, a mesma vista sobre a qual o olhar de Verlaine se havia estendido: uma incrível confusão de chaminés, coberturas bombes em folhas de metal, torres de igrejas e calhas retorcidas, que iam da Sorbonne a vasta esplanada dos Invalides. Quando a fumaça das chaminés das vizinhanças saía em linha, sem obstruções, ele sabia que sua lareira funcionaria a contento: valia a pena investir num feixe de lenha e comprar também alguns gravetos no vendedor de Bois-Charbon-Vin.

Em meados do inverno, Hemingway era forçado a procurar o calor de "um bom café na place Saint Michel" para lançar em seus cadernos azuis, os mesmos dos escolares franceses, o começo dos seus primeiros contos de um Michigan rememorado. Com o céu mais baixo do inverno, quando a cidade parecia um fugaz desenho na lousa, o principal refúgio contra os gélidos quartos de hotel e ateliês não aquecidos eram os terraços dos grandes cafés, envidraçados e aquecidos por braseiros de carvão.

"Chegou a estação dos grogues quentes de rum e dos tabuleiros de damas", escreveu Hemingway para casa. "Parece um bom inverno os cafés agora muito mais cheios de dia, com gente que não dispõe de aquecimento nos seus quartos de hotel."

Mas esse primeiro inverno foi tão frio que "todas as fontes congelaram". Para aquecer o coração, havia grande variedade de drinques, como o calvados, o kirsch e o rum Saint James. Um único copo de vinho ou um café filtre dava direito a um freguês a se sentar pelo tempo que bem quisesse para contemplar as fileiras de garrafas exóticas - Amer Picon, Noilly Prat, Dubonnet, Byrrh - e, para um escritor, o próprio exotismo dos fregueses no interior de um bistrô iluminado cujas paredes e mesas e comptoir de zinco fundiam-se numa colagem de Braque. Mais tarde, Hemingway datilografaria numa Corona portátil que Hadley lhe deu de aniversário, as histórias que ele andara escrevendo a mão nos cadernos azuis de escola.

A princípio ele hesitou em usar as generosas cartas de apresentação de Sherwood Anderson para Ezra Pound, Gertrude Stein e Sylvia Beach. A srta. Beach recebeu a dela bem mais tarde, depois de Hemingway ter descoberto a Shakespeare and Company e se apresentado por conta própria. A livraria era aquecida e tinha bom estoque de livros que a pobreza de Hemingway não lhe permitia comprar, mas que ele soube, feliz, que poderia pegar emprestados. Acostumou-se a chamar Sylvia Beach de 'madame Shakespeare' e sob este nome escreveu para ela na rue de l'Odeon, 12. Havia uma foto de Sherwood Anderson entre as que figuravam na galeria particular dos amigos literários da srta. Beach, mas Hemingway não a informou de sua amizade com Anderson nem lhe mostrou de início a carta escrita por este; só muito depois de ter se tornado o 'melhor freguês' da Shakespeare and Company foi que entregou a Sylvia Beach, e ainda assim timidamente, a apresentação que trouxera. Hemingway começou então a procurar Gertrude Stein e escreveu para Anderson:

"Gertrude Stein e eu somos como irmãos."

Impressionou-se e ao mesmo tempo divertiu-se com sua descoberta de Ezra Pound, que nessa época estava aprendendo a tocar fagote e fazia seus próprios móveis, toscos mas úteis, de madeira de caixotes. "Pound ficou com seis poemas meus... ele acha que eu sou um poeta e tanto. " o jovem autor jogava tênis e lutava boxe com Pound, e sentava-se aos pés da srta. Stein - absorvendo então como um perfeito estudante as lições que poderia aplicar com mais proveito à próprio busca solitária. Como estudante, aceitou conselhos e críticas dessas duas fontes originais - pelo menos durante as afinidades literárias do início, "quando as flores da amizade se abriam", sem as complicações das sangrentas rixas do final da década - mas foi bastante sábio para manter distância, em cantos neutros, seus dois preceptores nas artes.

Para aliviar-se da dura disciplina dos contínuos esforços literários, o jovem Hemingway lutava boxe ou assistia a competições esportivas em Auteuil ou no velódromo de Paris. Outra fuga das pressões criadoras, numa cidade feita para isso, era andar. Hemingway descobriu partes de Paris que os habitués do Dôme, da Coupole e da Rotonde nunca sairiam de suas cadeiras de vime para visitar: os ringues de boxe ao ar livre de Ménilmontant e o restaurante á beira-rio Chez Robinson, com mesas aninhadas sob as árvores ao longo do curso superior do Sena. Durante as incursões exploratórias pela cidade, o escritor ia acumulando os momentos, privados e públicos, nos quais poderia basear-se: um inventário de detalhes eficazes que dessem dimensão à sua ficção. Ao acaso, fez amigos entre corredores de bicicleta, que pedalavam toda a semana, e pescadores grisalhos dos cais da Île de la Cité, que dependiam dos minúsculos goujons que pegavam para suplementar as aposentadorias drasticamente reduzidas pela queda do franco. Hemingway foi parceiro de luta de boxeadores profissionais, amigo dos garçons dos cafés, confidente de prostitutas. Ao longo dos amplos bulevares ou intrometendo-se por estranhos becos sem saída, o jovem peso-pesado ia palmilhando a esmo a cidade que mais amava, seu domínio pessoal.

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